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Mostrando postagens de maio, 2010

outro tipo de matemática.

-O que você tem? Ele não sabia. Ele nunca aprendeu a fazer cálculos de palavras. Aquela pergunta poderia ter sido feita por qualquer voz, por qualquer pessoa que o encontrasse na rua gritando: eu tenho! eu tenho! -O que você tem, então? Não era qualquer pessoa. Ela se aproximou e ele foi capaz de ver suas rugas costuradas naquela pele que ele tanto já tinha visto sem maquiagem, quando acordava, olhava para o lado e a vi na sua forma mais pura. O que ele tinha? Ele tinha tudo. Seu coração estava que nem um copo a beira de transbordar. Uma batida na mesa, uma leve batida na mesa, faria a mesa tremer, o copo tremer...seu corpo todo tremia, tentando equilibrar a lágrima tímida que já tendia a escorregar pelo nariz. Seus pensamentos não cabiam mais na caixa de guardar pensamentos que ganhou na hora de nascer. Estava tudo lotado, no extremo limite. Tudo apertado. Tudo guardado demais. -O que você tem? Me diz. Sua voz estava presa. Sua vontade era de se partir ao meio e mostrá-la o turbilhão

uma velha caixa de baralho

Dizer que ela iria é uma forma sutil de di zer que ela já tinha ido. Não fez cena para decidir. Jogou umas roupas na bolsa. Jogou a bolsa no chão. Foi até o espelho e começou a se despir. Arrancou todo tipo de gosto que sua pele tinha, queimou todo tipo de agressão que seus ouvidos tinham ouvido e engoliu as palavras que eram para ter sido ditas. Só faltava esquecer aquele momento do espelho. Matar qualquer lembrança que a fizesse lembrar dos dias que passou naquele lugar. Não poderia mais, jamais, lembrar da sua cara refletida no espelho, do lixo sentimental que tirou do seu corpo e da decisão que tinha tomado. Lembrar a fazia pensar. E pensar demais sempre a fazia mudar de idéia. Bateu a porta com força, não para quebrá-la, mas para assustar os fantasmas daquele lugar que só tinha de branco as paredes. Virou a chave. Tirou a chave. Abriu a porta. Era como se facas a perfurassem a cada passada dada naquele caminho de volta. Foi até o espelho e o quebrou com um murro. Pedaços de uma mu

muro do fim do mundo

Dulce tirou seu corpo ainda lento de sono e foi ver o sol. Não, Dulce sempre preferiu um contato mais íntimo. O sol é tão tímido que usa o que tem de mais vistoso para impedir que curiosos o encarem de frente. Dulce não queria ter seus olhos de curiosa queimados pela fúria de um estrela em chamas. Dulce preferia andar sobre o sol, encostar nas paredes onde o sol fazia suas sombras, sentir o sol deixar sua cabeça quente. Descalça, sentiu a quentura dos grãos de areia do terreno fazer cócegas nos seus pés. Foi andando, chutando pedrinhas e pulando sobre formigueiros, que mais pareciam buracos cheios de vírgulas. O fim do quintal era para Dulce como o fim do mundo. Nos dias que aparentemente não aconteciam nada, Dulce se aventurava pelo quintal até o fim do mundo. O chão quente a fazia ficar levantando os pés num ritmo que só aumentava. Dulce corria, atravessava os gigantes obstáculos de tijolos que seu pai construía. Na verdade, não eram obstáculos, eram apenas tijolos amontoados. Mas,

basta ir até a janela

É madrugada, e as ruas dormem. A cidade continua viva, pulsando. Basta ir até a janela e ver as luzes vibrando. Cada ponto de luz dança na velocidade do vento. O mesmo vento que passa pela sua janela e assanha os seus cabelos. Há dias que parece que a noite morreu. Não há brisa, nem tempestade. Não há nuvens. Lua? A lua não põe nem o brilho em dias de noite morta. Não há barulho. Não há pessoas. Até que um cachorro uiva. Uma homem grita. Um carro buzina. E a noite ressucita. O silêncio é quebrado, as janelas se acendem e uma pessoa aparece na esquina. Não, não foi nada. Foi só um susto. No mais íntimo poço da noite, os sussuros da respiração , os gemidos dos corpos em atrito e as agonias da pele em dor são o que há de mais vivo. É madrugada, e as ruas dormem. As pessoas dormem. A cidade continua viva, pulsando. Basta ir até a janela e ver que a noite já está indo embora.

tortura das palavras

Passar muito tempo sem escrever é como passar muito tempo sem pegar uma gripe forte. Você vai dormir aparentemente saudável e acorda com o corpo dolorido, a garganta arranhando e uma preguiça do cão. Com a escrita, é quase a mesma coisa. Seu cérebro fica processando ideias a cada coisa que acontece no seu campo de visão, mas não se consegue transformar uma imagem em palavras, suas mãos têm preguiça de tentar e apagar, tentar e apagar, apagar, apagar, rasgar o papel e deixar pra mais tarde e você fica se sentindo mal por não ter conseguido, ou, ao menos, tentado registrar uma cena. Já que não escrevia, ao menos, pensava no ato de não escrever. A dificuldade que se tem em 'metaforsiar ' um acontecimento qualquer, se relaciona intimamente com a forma que você quer, ou, na forma que você pensa que seu texto vai ser encarado, criticado, julgado, interpretado e mal interpretado. Quando se começa a pensar demais, ajeitar demais, corrigir demais e inserir intenções demais em