Restos do Carnaval


"Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojo0s de serpentina e confete. Um ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas" (Clarice Lispector - Felicidade Clandestina)
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Sentada na escada de cimento batido, ficava observando as crianças correndo pela rua. Em dias de carnaval, quase não havia trânsito de carros nas pequenas ruas que cruzavam as grandes avenidas carnavalescas. Passava o ano pensando na fantasia que iria usar, uma fantasia que me deixasse bonita. Mamãe era costureira. Já estava acostumada a tropeçar em tubos de linha pelo chão da casa e se enrrolar com pedaços de panos no sofá. Mamãe costurava a casa toda, só não costurava para as pessoas de casa. Dizia que não tinha tempo, que estava muito ocupada com as roupas chiques da mulheres que chegavam aqui de chapéu grande e bolsas maiores ainda. Faltando alguns dias para o carnaval, ela me chamava e perguntava se eu já tinha decidido qual seria a minha fantasia. Todos os meus dias de sonhos, no final, seriam resumidos a alguma fantasia montada com os retalhos de panos coloridos que sobravam dos vestidos de festa. Uma flor de pano franzido rosa me enfeitava a cabeça. Mais parecia uma flor murcha de jardim até que bem cuidado. Mamãe planejava tudo, do pequeno botão que fecharia a parte de cima do vestido, aos fiapos que ficavam depois de terminada aquela montagem.

Saia na rua me achando uma palhaça, não importando a fantasia que estivesse vestida. Descia a escada sentindo os olhos do mundo me fuzilando e rasgando cada pedaço de linha daqueles vestidos feitos por pura comoção de me deixar alegre em dia de carnaval. Só a usava no terceiro dia, que havia um desfile de crianças na rua ao lado. Era um desfile sem ganhadores, que ia apenas pela reputação de minha mãe. Como filha de uma costureira conhecida na cidade, tinha que estar presente em todo evento sem graça que era inventando e que minha mãe era comunicada.

Não era crueldade, ficar nem um pouco satisfeita com as fantasias que me eram enfiadas pela cabeça. O que me cortava o coração era não poder escolher o que vestir, era não poder palpitar na cor da roupa, no tamanho do vestido, nos botões coloridos que enfeitariam as alças. Era o que sobrava, o que tinha o que restava, o que já estava comprado. Nada de planos, nada de desenhos de estilistas, nada de dedicação das bordadeiras da mamãe, nada de opções, nada de gostos próprios, nada com a minha cara. Sentia o dinheiro daquelas velhas me coçar a pele cada vez que o vento batia e vestido grudava em mim.

Mas eu não dizia nada. Não dizia nada para ninguém. Simulava sorrisos de satisfação para todos aqueles mentirosos que passavam por mim e diziam: como você está linda esse ano. Meu nome é Linda. E todo ano, eu era a mesma coisa.
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Bem, foi uma idéia que eu tive. Começei a reler 'Felicidade Clandestina' de Clarice Lispector pela terceira vez, se não me falha a memória. É um livro que a cada leitura, muda-se a maneira de entender cada conto que ali se encontra. Dessa vez, eu decidi dar um um novo final aos contos. O título será o mesmo, o início será o mesmo e o resto...o resto será uma outra história.Não irei fazer isso com todos. Não tem como. E não vou ser tão atrevida assim.
Experimente fazer isso com os seus autores preferidos.
É uma boa maneira de ter novas idéias e de explorar os personagens já tão conhecidos.



beijo torto!

Comentários

Ana C. disse…
Oiee!
Acho que é a primeira vez que volto depois do "primeiro contato". Ou não.
Enfim,seu blog salvou meu carnaval e eu serei grata a ele por toda a vida, amém.
Li todos os post, sem nenhuma exceção, e preciso confesar q virei sua fã, garota!
Corrija-me se eu estiver errada, mas vc dança,desenha,pinta,vive em cima de um palco de teatro, ia aprender a tocar violão,fotografa (as fotos são lindas!)...esqueci alguma coisa? Não vai me dizer que vc é atriz e canta tbm!? :D
Se eu te encontrar no meio da rua/parada de ônibus eu te peço um autográfo! uahaha
E a propósito, como eu posso/devo te chamar? Isa, Bel, Isabelle, Dona do Chapéu, Bailarina... muitos nomes para uma pessoa só! ;P

E... adorei o conto.
Graças a Deus minha mãe n é costureira, pq do jeito q ela é...ai Cristo, qro nem imaginar o desastre! uahaha

2 bju torto. ;)
Mr. Zeppelin disse…
Como sempre um excelente texto. Toda vez que leio as coisas que aqui você posta sinto uma vontade enorme de criar um blog, mas a preguiça sempre me impede, hssuhsasahua... xD

"Quato ao pano dos confetes já passou meu carnaval, e isso explica porque o sexo é assunto popular..."
Ceres disse…
Criatividade à flor-da-pele.

"Em casa de ferreiro o espeto é de pau."

Ser subjugado e aceitar os restos por ter medo de nega-los certamente é uma tortura mental; pobre personagem.

Parabéns.
Os tortos são sempre mais charmosos.
Ana C. disse…
Ownnn...só pq eu comecei a aparecer vc sumiu!
Sniif! :(


;D
Camilla Fernanda disse…
Ótimo conto!
Tem selo pra você no meu blog, passa lá
;)
Beijos
http://tudoqueachocerto.blogspot.com/2010/03/selos.html

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