sutilmente

É quase permanente em mim a vontade de traduzir em palavras o que vejo com o pensamento. Imagino. Imagino sempre. Quando a casa enfim dorme, percorro o corredor cheio de portas, ouvindo apenas e sutilmente a respiração constante dos meus familiares. Passo e chego na varanda. O vento da madrugada assanha meus cabelos ainda molhados do banho da noite, gruda meus pijamas desajeitados em meu corpo cheio de frio e tenta, com insistência, penetrar na minha pele, envolver os meu músculos e me levar daquele lugar. São poucos andares ( já foram mais) acima das ruas da cidade. Da varanda, vejo uma cidade se transformar em um pontilhado de luzes. É apaixonante ver um lugar indo dormir e um lugar acordando. Poucas coisas são tão bonitas quanto o momento que antecede o nascer do sol. Uma luz discreta surge no leste; o vento ainda é frio; o silêncio vai, aos poucos, deixando o reinado; os pássaros conversam em assobios e as luzes, como num dómino em câmera lenta, vão se apagando, se apagando, até serem apenas postes de concreto cheios de fios que riscam o céu.
Quando vou pra varanda, me debruçar sobre uma pedra gelada, imagino o que vai acontecer após o minuto presente. Não fico bagunçando lembranças. Não faço suposições passadas. O que teria sido se tivesse feito diferente? Nunca saberei. Quando se faz uma escolha é preciso esquecer as outras opções. As outras opções, por terem continuado no rumo secreto das coisas não escolhidas, vão querer invadir sua mente quando um tubarão aparece no mar da vida.
Enfim, o frio atinge o abrigo da minha alma e percebo que era hora de entrar, fechar a porta e ir dormir.
Fecho as cortinas, mas deixo uma brecha, um berço na verdade, para o sol, quando nascer, entrar.
O lençol velho e fino é na metáfora um sopro morno que só conforta e nada esquenta.
beijo torto!

Comentários

Luíze Tavares disse…
Muito lindo o seu texto.

beijos
Luna disse…
"Um frio que suplica o aconchego"
Lembrei desse trechinho de uma música.



Seu texto é lindo!
Bia Falcão disse…
Uma riqueza de detalhes, maravilhosa. Sem falar na boa dramaticidade. Muito bom.
Érica Ferro disse…
"Não faço suposições passadas. O que teria sido se tivesse feito diferente? Nunca saberei. Quando se faz uma escolha é preciso esquecer as outras opções. As outras opções, por terem continuado no rumo secreto das coisas não escolhidas, vão querer invadir sua mente quando um tubarão aparece no mar da vida."

Pura verdade!
Esse trechinho me fez refletir. Aliás, como o texto inteiro.
Bia Falcão complementará o meu comentário: "Uma riqueza de detalhes, maravilhosa. Sem falar na boa dramaticidade. Muito bom." ²

:*
Érica Ferro disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
SHINE * disse…
Adorei seu texto, você escreve muito bem! Beijos

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